sábado, 15 de janeiro de 2011

TRANSFIGURAÇÃO

A Transfiguração no Tabor, a Ressurreição, o momento que acompanhou os discípulos no caminho do Emaús e a sua ascensão em Betânia, são episódios que causaram entusiasmo entre os mitólogos, naturalmente interessados em provar que Jesus de Nazaré era simplesmente um mito.

A sensação de realidade que possuímos da nossa própria integridade física, o hábito de nos apoiarmos na realidade perceptível como garantia da veracidade da nossa própria existência e a ilusão da constância de nossa forma física, leva-nos a considerar o que se apresenta como instável e mutante na condição de simples ilusão.

A fantasia, o sonho, o mito, nada mais são do que elementos imaginários que se inserem fugazmente no duro mundo concreto da existência.

Não obstante, sabemos que a existência, segundo a definição das Filosofias Existenciais da atualidade, é puramente subjetiva.

Nós mesmos, nesse caso, somos irrealidades ideais que nos inserimos furtivamente na realidade objetiva. As metamorfoses de Jesus não diferem daquelas porque passamos em nossa própria vida.

Na Ressurreição, Madalena não reconhece de imediato à presença de Jesus e o confunde com o jardineiro.

Tomé recusa-se a aceitar a veracidade das manifestações do Senhor no Cenáculo das reuniões apostólicas e só se convence ao tocar as chagas da crucificação.

Os discípulos de Emaús só reconhecem o Mestre, que para eles estava morto, no ato de partir o pão, quando ele se identifica pelos gestos e a atitude.

O mesmo acontecerá com os discípulos a caminho da Galiléia.

Mas a ascensão em Betânia mostra-se tão carregada de elementos míticos, que só hoje pode ser encarada como parcialmente verídica, graças ao conceito de paranormalidade e às novas leis descobertas no campo da fenomenologia de ordem física.

Sem o conceito atual do corpo-bioplásmico, que confirma a tese cristã do corpo espiritual e a descoberta espírita do perispírito, no século passado, não poderíamos admitir o episódio da ascensão em termos de realidade visível.

Também no episódio do Tabor, com a presença de Elias e Moisés ao lado de Jesus, tudo não passaria de uma alucinação mística de natureza estritamente simbólica.

Mas as pesquisas metapsíquicas e parapsicológicas do nosso tempo revalidam a realidade do episódio, sem com isso negar a presença, no mesmo, de elementos míticos decorrentes de funções dos arquétipos do inconsciente.

Ao lado desses episódios, que têm hoje o apoio das novas descobertas científicas, aparecem outros que se caracterizam como inapelavelmente mitológicos.

Guignebert, que considera o episódio da Paixão como tipicamente histórico bem enquadrado na realidade do tempo, repele a interpretação do mesmo pelos gnósticos-docetas, no primeiro século.
Segundo estes, a estranha figura de Simão Cireneu, que chega do campo e ajuda Jesus a carregar a cruz até o Calvário toma as feições e o aspecto geral de Jesus, enquanto este se revestia de todo o aspecto do camponês piedoso.

Dessa maneira, chegando ao Monte das Oliveiras, os soldados incumbidos da execução crucificaram o Cireneu em lugar de Jesus, que tranquilamente deixou a sua imagem na cruz e se retirou para surpreender os seus apóstolos e discípulos com a sua pretensa ressurreição.

Os docetas sustentavam que Jesus não tinha realidade física, que o seu corpo era apenas aparente.

Sua posição contrariava as teses da encarnação do Cristo, apresentando-o como uma espécie de deus mitológico, sob a influência das ideias helenísticas.

O Docetismo exerceu grande influência em Alexandria, propagando-se a Éfeso, onde o Apóstolo João instalara a sua Escola Cristã.

João refutou a tese doceta como herética, pois além de não corresponder à realidade histórica, transformava o Cristo num falsário.

Renan conta um curioso episódio em que João se dirige com seus discípulos ao balneário público de Éfeso, e ali chegando volta com os discípulos, dizendo-lhes:

"O balneário vai cair, pois lá se encontra Cerinto, o maior dos mentirosos".

Cerinto era um dos introdutores do Docetismo em Éfeso.

Essa teoria absurda reapareceu na França, através de uma obra confusa e carregada de pesado misticismo ridicularizante.

Um advogado de Bordeaux, Jean Baptiste Roustaing, elaborou essa obra através de comunicações mediúnicas atribuídas a Moisés, João Batista, os Apóstolos e os Evangelistas.

Um grupo místico do Rio de Janeiro adotou com entusiasmo essa obra, conseguindo apossar-se da Federação Espírita Brasileira, e até hoje a propaga e sustenta, contra a maioria das instituições espíritas do Brasil e do mundo.

É inacreditável o fanatismo dos roustainguistas, o que se justifica pela sua mentalidade antirracional, apegada aos resíduos do passado mágico e mitológico, portanto contrária à posição racional do Cristianismo e do Espiritismo.

Esses defensores do absurdo chegam ao cúmulo de citar a obra mistificadora, Os Quatro Evangelhos, como uma das dez obras mais importante da literatura mundial, e Roustaing, como uma das dez maiores figuras da Humanidade. Kardec condenou essa obra, o que provocou um revide de Roustaing.

Ao episódio do Tabor, cujo relato evangélico apresenta todas as condições de um fenômeno paranormal, inclusive com atitude dos apóstolos, que sugere a doação de energias ectoplásmicas para a aparição de Elias e Moisés, a fábula dos docetas (como o Apóstolo Paulo a classificou) apresenta-se como uma das mais estranhas desfigurações do Cristo.

Essas desfigurações forneceram elementos ricos e valiosos aos mitólogos para negarem a existência real e histórica de Jesus de Nazaré, como o fizeram Artur Drews e Georges Brandis, entre outros.

Nas reuniões dos cristãos primitivos, logo após a morte de Jesus, o chamado culto pneumático era constantemente tumultuado pelas manifestações de espíritos turbulentos e grosseiros, que diziam pesados palavrões contra o Messias.

O Apóstolo Paulo nos oferece o modelo de um culto pneumático no capítulo intitulado Sobre os Dons Espirituais, em sua I Epístola aos Coríntios.

O nome do culto era derivado da palavra grega pneuma, que significa espírito e sopro.

Paulo aconselha ordem rigorosa no culto, falando cada profeta por sua vez e permanecendo os outros em oração, precisamente para evitar a interferência de manifestações agressivas.

O profeta era o que hoje chamamos médiuns, os intermediários entre os espíritos e os homens.
Como havia muitas comunicações em línguas estranhas, como as ocorridas no Pentecoste, Paulo recomenda que ninguém aceitasse comunicações em língua que ninguém da mesa conhecesse, pois, sem poder traduzí-las, a manifestação não serviria para ninguém.

Esses cuidados permanecem no Espiritismo, e muitas sessões mediúnicas seguem a orientação paulina.

Não obstante, a situação hoje é diferente, pois a mediunidade, profundamente estudada e pesquisada, em todo o mundo, pode agora ser melhor controlada.

As sessões mais proveitosas e produtivas são aquelas em que há maior liberdade, proporcionando o diálogo entre espíritos comunicantes, para maior elucidação dos problemas em causa.

Vários doutrinadores entram em ação, de maneira que os médiuns presentes são melhor aproveitados.

Ainda hoje aparecem, em menor número e com menos violência, espíritos agressivos que repelem o Cristo.

Esse fato é importante porque mostra a continuidade do culto pneumático e a insistência dos espíritos inferiores na desfiguração do Cristo, que chegam a chamar ainda de embusteiro.

São esses os espíritos da mentira, em oposição aos espíritos da Verdade, que procuram esclarecer e orientar as entidades malfeitoras.

O interesse em desfigurar o Cristo vem dos planos inferiores do mundo espiritual e se manifestam de várias formas: pelas comunicações mediúnicas inferiores, pelas intuições dadas a adeptos do Cristianismo e do Espiritismo para introduzirem teorias e práticas ridicularizantes no meio doutrinário, sempre atribuindo a Jesus posições, palavras e atitudes que o coloquem em situação crítica pelas pessoas de bom senso.

Para isso, as entidades mistificadoras se aproveitam da ignorância e da vaidade de criaturas desprevenidas, da autossuficiência de criaturas autoritárias e arrogantes, que facilmente se deixam levar por elogios e posições lisonjeiras que podem exaltá-las na instituição a que pertencem.

A gigantesca luta empreendida pelo Apóstolo Paulo, após a sua conversão, para preservar a pureza dos ensinos de Jesus e da sua excelsa figura, em meio aos próprios apóstolos do Mestre, revela de maneira eloquente, a dificuldade dos homens para compreenderem a Verdade Cristã.

Os apóstolos judaizantes, como ele os chamou, e entre os quais se encontrava o próprio Simão Pedro, pode nos dar a ideia do que realmente se passa nesse caso, para não cairmos também em interpretações místicas de uma situação natural, proveniente da falibilidade humana.

Não se trata de nenhum mistério, de uma potência satânica a espreitar-nos nas trevas, de um Reino do Diabo a combater o Reino de Deus, de uma figura assustadora do Anticristo a lutar contra o Cristo.

O próprio episódio evangélico da tentação de Jesus no deserto, pelo Diabo em pessoa, revela-nos o seu sentido alegórico no fato incontestável de que a tentação era provocada em Jesus por insinuações lisonjeiras.

A condição humana de que ele se investira, para viver entre os homens e falar-lhes como homem, o sujeitava naturalmente à fascinação das ilusões terrenas.

Jesus meditava sobre a missão difícil que ia realizar, cheia de perigos evidentes, e na meditação se infiltravam naturalmente as opções da fuga.

Em todas as grandes religiões encontramos figuras diversas dessa luta, em que o espírito superior enfrenta as solicitações do plano inferior e precisa vencê-las para não fracassar nas batalhas que vai travar.

Na História de Buda, surge a alegoria das tentações no momento em que ele se senta sob a árvore da meditação.

No Islamismo temos o exemplo do que pode acontecer ao espírito que se deixa vencer.

A guerra incruenta do espírito para ajudar o homem a elevar-se, transforma-se no domínio absoluto da espada e do alfange, desencadeando a terrível guerra do Islã, em que o Cristianismo, de cujas entranhas nasceram o Islamismo, se converte no inimigo a ser derrotado pela força das armas.

Cada forma de vida tem as suas leis, constitui-se de um vasto e profundo sistema de ações e reações, causas e efeitos que formam a teia de aranha em que a própria aranha se enrosca para poder viver.

Essa teia pode ser definida como um campo estruturado de forças a que o espírito se imanta e ali permanece subjugado pelas forças gravitacionais do campo.

A lei de inércia, que mantém a estabilidade das coisas e dos seres, no processo de conservação, tange na pedra que repousa no chão, quanto no espírito que repousa em seu próprio modo de ser.
Essa lei não é má nem diabólica, é natural e faz parte do processo evolutivo.

Mas a mente humana, com sua tendência antropomórfica, reveste os seus efeitos de características humanas.

O mito do Diabo não é mais do que uma forma do antropomorfismo que se infiltra em todas as nossas fases de transição para planos superiores do espírito.

Por isso, Jesus preceituou:

"Vigiai e orai".

A vigilância se exerce primeiro em nós mesmos, em nosso íntimo, e a seguir na relação social.
Depois do episódio da estrada de Damasco, Paulo recolheu-se à meditação no deserto para reestruturar a sua situação espiritual, profundamente abalada pelo terremoto psíquico e emocional do encontro com Cristo.

Só então poderia voltar à ação, às atividades do seu apostolado, que o Cristo transformara de judeu a cristão.

Muitas vezes sentiria ainda os impulsos anteriores influindo na sua nova conduta.

Muito teria de lutar para não cair de novo no campo estruturado e sempre ativo dos seus condicionamentos.

É que enfrentou fracassos não há dúvidas, pois ele mesmo clamou.

"Miserável homem sou, que não faço o bem que quero, mas o mal que não quero!"

Tinha um espinho na carne, segundo declarava, e um espinho inquietante que os outros viam e comentavam.

Mas a sua intenção firme de vencer, a sua convicção da realidade espiritual do Cristo e a sua vontade em permanente tensão o levariam à vitória sobre o Diabo, sobre as forças retrógradas em atividade no seu íntimo. Venceu galhardamente no tocante a si mesmo, na batalha interna.

Mas no campo das atividades externas, não conseguiu livrar-se de condicionamentos judaicos enraizados, que o levaram a tomar uma posição negativa no tocante às mulheres (sempre mantidas na área da submissão escravagista) e no tocante à Doutrina cristã, que enredou na sistemática da Igreja, tendo mesmo fundado a Igreja Cristã independente em Antióquia, com sua incipiente hierarquia sacerdotal.

Não conseguiu perceber o sentido profundo da renovação cristã, o significado interior da liberdade em Cristo, e nem foi ele — nem Jesus, nem Pedro — o fundador da religião que deformaria totalmente o Cristianismo do Cristo.

Claro que a instrução de Paulo não era essa.

Ele sonhava com um Cristianismo puro, severo, bem estruturado, com a disciplina judaica do Tempo, sustentando a Verdade cristã num mundo indisciplinado que devia organizar-se na ordem da moral cristã.

Seu erro foi justamente esse.

Jesus de Nazaré nunca mostrara interesse pela pompa e a disciplina fria do Templo.

Como afirma Guignebert, ele não queria fundar nenhuma religião e nenhuma Igreja.

Jesus falava às almas, não aos robôs das instituições sociais.

Não pretendia organizar exércitos poderosos para Iavé, que já perdera os seus para o furioso Júpiter Capitolino.

Não queria tropas ao seu serviço, mas rebanhos pastando nos campos ao alvorecer.

Queria a terra florida com a germinação das suas palavras.

O Cristianismo não surgia como religião formal, mas como a pura essência da Verdade.

Um movimento de almas, não de corpos materiais animalizados e atrelados ao carro dos poderosos.
Paulo, que se formara na disciplina farisaica, não podia compreender esse anarquismo do espírito, que antes lhe parecia vagabundagem, indisciplina, sonho irrealizável de um poeta inspirado nas utopias platônicas.

Não lhe passaria pela mente dizer isso de Cristo.

Assim, Cristo só poderia desejar a estruturação de uma Igreja forte e poderosa, insuflada pelo sopro do espírito messiânico.

A fracassada tentativa dos Apóstolos, com o velho Pedro à frente, de organizar a comunidade descrita no Livro de Atos, comprovada isso de maneira absoluta.

Paulo quis e fundou a Igreja em Antióquia, mas os romanos deram a cadeira que lhe pertencia ao velho Pedro.

Era muito importante, naquele tempo, falar em Cristo Crucificado, porque essa imagem chocante mostrava Jesus como vítima da maldade humana, particularmente dos poderosos da Terra.

A simples menção desse nome despertava a lembrança do conluio judeu-romano para esmagar as esperanças de Israel.

Hoje essa expressão soa falsa, pois o Cristo desfigurado aparece também como Rei, como um mito grego, como uma divindade da magia primitiva, que sacerdotes paramentados podem obrigar a se transubstanciar nas espécies materiais de uma forma sacramental.

Hoje, além disso, o Cristo Crucificado aparece como instrumento dócil de demagogia política, símbolo de perseguições religiosas, de fogueiras assassinas, de guerras violentas, de mentiras interesseiras pregadas ao povo através de dois milênios de incessante deformação de sua figura humana e de sua doutrina de justiça e amor.

Hoje só existe um símbolo para o Cristo: o da Ressurreição.

Provada cientificamente a existência do corpo espiritual, provada a continuidade da vida triunfante após a morte, provada a herança de Deus na imensidade do Cosmos povoado de mundos, provada a ineficácia das instituições religiosas e seus métodos para levar os homens a Deus, pois que a maioria se afastou de Deus e o considera como superstição estúpida, só a figura do Cristo Ressuscitado, triunfando sobre a veleidade dos poderes terrenos e confirmando em si mesmo a verdade dos seus ensinos, poderá libertar as consciências do apego às coisas perecíveis, dando-lhes a confiança no poder superior do- espírito.

Se somos espíritos e não apenas um corpo material, e se temos a certeza de que o Cristo continua vivo e a nos inspirar em nossas lutas no caminho do bem, por que cultivarmos a morte e até mesmo as imagens de um cadáver que não foi encontrado no túmulo?

A desfiguração do Cristo atingiu o máximo nessas imagens frias que dormem o ano inteiro nas
criptas das Igrejas, à espera do seu enterro anual, com luto, choro e velas acesas.

O sadismo humano se revela num automatismo conscencial que o perpetua nas gerações sucessivas.
Chegou o momento de compreendermos que o Cristo está diante de nós, na plenitude de sua vida e seu poder, procurando despertar-nos do pesadelo da morte.

Trecho do livro de J. HERCULANO PIRES “REVISÃO DO CRISTIANISMO”

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